sábado, 26 de setembro de 2009

Esquerda e Direita com "G comme Gauche" de Deleuze

Não é propriamente um tema que me apaixone mas, em vésperas de eleições, pareceu-me interessante recorrer a um filósofo francês, lido e respeitado mesmo por Alan Sokal e Jean Bricmont, os autores de Imposturas Intelectuais, onde reduziam as ciências humanas a um conjunto de imposturas sem nexo e sem fundamento. Do barulho que esse livro provocou um pouco por todo o mundo (em Portugal passámos ao lado...) não vem a propósito. Mas do que G. Deleuze pensa sobre o que distingue esquerda e direita parece-me muito importante. Especialmente numa altura em que os traços identificadores da prática política parecem ser cada vez menos dicotómicos e mais embrulhados num novelo indistinto. Especialmente para aqueles que já não sabem se são de esquerda ou de direita. (O centro parece-me o apeadeiro onde se pára à espera do próximo comboio, que vai para a esquerda ou para a direita. Claro, claro,... pode avariar e ficar ali parado... Mas é um comboio avariado!... Até que outro o venha substituir e vá para a esquerda ou para a direita. Entretanto, o apeadeiro vai enchendo, enchendo, os passageiros começam a ficar incomodados, depois, indispostos, depois, impacientes, depois, protestam, depois, bom, depois, quando o comboio chegar, uns entrarão no 1º que chegar, apenas para saírem dali e descerão no próximo apeadeiro à espera do próximo comboio, outros esperarão por aquele que melhor satisfizer o seu desencanto e vão para a direita ou para a esquerda).

Li ou ouvi, não sei bem (ou não terei lido nem ouvido e simplesmente sou eu que penso tê-lo lido ou ouvido?! Para o caso o importante é que) o que essencialmente distingue a esquerda da direita é o inconformismo. A esquerda é inconformista, a direita conformista, a esquerda é inovadora, a direita conservadora. Mas aqui surge um problema: a maioria é sempre conservadora, apenas a minoria é revolucionária, inovadora. A maioria cuida sempre de nutrir-se e, para isso, vai gerindo a situação, vai se conservando, vai criando condições de estabilidade, quer dizer, vai criando condições para que a mudança não vá além da conservação da estabilidade. A maioria abomina a mudança, a maioria conserva a estabilidade.
Ora, se a esquerda é inconformista e a maioria conformista e conservadora... Pois!...

Descansem os que se reconhecem de esquerda: nenhum organismo ou organização consegue viver na inovação permanente, na desestruturação permanente, no caos sem nexo... Descansem os que se reconhecem de direita: nenhum organismo ou organização consegue viver sem inovação... Descansem os centristas: os comboios continuarão a passar em horário mais ou menos certo (há apenas uns pequenos ajustamentos...).


Para melhor esclarecimento fiquem com Deleuze, de viva voz.

7 comentários:

Elenáro disse...

O último paragrafo resume de forma excelente a realidade. Concordo com a sua fantástica análise!

Continuação de um excelente fim de semana!

jad disse...

Obrigado, Elenáro.

Igualmente para si. Penso que ainda havemos de nos visitar mais vezes durante o fim de semana.
Abraço

tacci disse...

Jad:
Só umas palavras simplórias à pressa, posso?
As organizações, claro, têm as suas lógicas próprias.
Uma central nuclear não pode deixar de exigir meios de controle e vigilância que, noutro lado qualquer, seriam classificadas como "fascistas", "estalinistas", "guantanamianas". Concentracionárias, no mínimo.
Uma central nuclear, no entanto, não é de direita nem de esquerda, pois não?
Só quem decide que ela seja construída apesar do que vai exigir de atentados às liberdades individuais.
E que queria essa pessoa? Com que sonhava?
Com o poder? Com o poder a todo o custo?
Para mim, mas eu sou um simplório iconoclasta, como sabes, a linha divisória passa por esses sonhos, ou, se preferirmos pela imagem que fazemos do nosso triunfo próprio.
Esquerda e direita, para mim, claro, não têm nada de objectivo: são do domínio das intenções.
Se nos imaginamos a triunfar «contra» o nosso próximo (ele é apenas um meio), somos de direita. Se nos imaginamos a triunfar «com» ele (o fim dos nossos actos), somos de esquerda.
A «vontade boa» kanteana, no fundo.
E se alguém que se julga de direita se sentir magoado porque sabe que tem essa «vontade boa», mas não quer ser de esquerda, ele que troque as palavras à vontade.
Não é isso que tem importância, pois não?
Só o diálogo que encetar connosco.
Pronto: alonguei-me mais do que queria.
E alguém que me diga onde é que estou errado, por favor.
Um abraço.

jad disse...

Tacci amigo, palavras "simplórias, à pressa"?! Pois, pois. Já te conheço há muito!...

O que poderei dizer?
Colocada a distinção ao nível da intencionalidade tens, evidentemente, razão. Mas, se eu entendo bem, a determinação da boa vontade está intimamente ligada à liberdade e esta apresenta-se como uma necessidade, como um imperativo. Se assim for a intencionalidade está ela própria condicionada ao imperativo que nos obriga a agir considerando o outro como um ser livre, isto é, com iguais possibilidades de uso de liberdade. Ora, se tiver razão, o respeito pelo outro como aquele que não sou eu (nos termos em que eu costumo colocar esta questão) creio ser característica da esquerda, pelo menos dos primórdios ideais da esquerda.
Mas, claro que tens razão: as coisas não têm dimensão moral, não são boas. nem más. É o uso que delas fazemos que as torna boas ou más. Ou, noutra perspectiva, que me parece ser a que aqui apresentavas, segunda a intenção com que se fazem ou se usam.

Parece-me,a este propósito, que a posição de Deleuze pretende escapar a esta problemática dimensão moral colocando a distinção entre esquerda e direita ao nível da percepção.

Podes ajudar a esclarecer isto?
Abraço.

tacci disse...

Zé:
Desculpa este atraso. Andei a pensar nisto e não creio que possa ser de muita ajuda porque, como é o meu pior defeito, raramente leio os autores: transleio-os, se me é permitido inventar a palavra.
O que me pareceu, então ao transler Deleuse, foi que todo o conhecimento é um mapeamento feito de redes de noções que não existem umas sem as outras: primeiro construímos o mapa da nossa casa, em torno da nossa mãe, depois o da nossa aldeia em torno da nossa casa e por aí fora, até à construção do mapa-mundo: mas é um mundo estrictamente particular porque é feito de vivências. E, claro, os mapas condicionam a percepção.
Para dar um exemplo banal: um jovem do Barreiro, filho de comunistas dos duros, operários assumidos, construirá um mapa da realidade completamente diferente da do jovem lisboeta. A razão disto está, julgo eu, no facto de que estes mapas que condicionam a percepção não são construídos a partir de conceitos, mas de esquemas empíricos. Estes, por sua vez, dependem do concreto: o esquema de «esmola», por exemplo, será completamente diferente em quem a pede, do que será em quem a dá, mesmo se ambos, na catequese, aprenderam o mesmo conceito.
Deleuse fala também em intensidades, creio que a propósito do Klossovski. Não tenho a certeza disto que vou acrescentar, mas faz sentido: a intensidade não vem, obviamente, da repetição: vem da diferença. A minha casa repete as casinhas todas do meu bairro, mas há uma diferença fundamental que tem a ver com os afectos (digo eu).
Portanto os mapas são mapas de intensidades. Se emigrares para a Austrália, o ponto mais intenso (mais real?)de toda a península Ibérica não será Lisboa, nem Madrid, é tua aldeia.
Acho que já me perdi.
Mas, só para concluir: eu percebo-me de esquerda e percebo as coisas com essa mesma visão (Deleuse) mas posso agir como de direita (Kant).
Marx quis fugir a esta dicotomia prescindindo do plano ético, do dever-ser. E as consequências estão à vista, não estão?
Um abraço: como dizia a minha mãe, pára filho, quanto mais falas mais atrapalhas.

jad disse...

Tacci amigo, parece-me claro que o teu comentário exige reflexão atenta. A ele voltarei, prometo. Acho, de resto, que merece torná-lo mais presente. Por isso, se não te importares colocá-lo-ei num post, que actualizará os comentários que desencadear. Creio que teremos todos a ganhar. Pode ser?!
Abraço.

tacci disse...

Claro que pode.
Lisonjeia-me um pouco mais do que eu mereço, mas, como sabes, nunca consegui resistir a um debatezinho civilizado.
Outro abraço.