Daniel Faria (10 de Abril de 1971-9 de Junho de 1999) é um poeta, um enorme poeta. De uma melancolia triste herdeira do Só, as palavras afundam-se na nossa condição de homens como sementes do pão com que saciamos a fome de viver. São assim os grandes poetas. Batem-nos por dentro no estômago, na cabeça, no coração, no corpo inteiro. E batem forte até estremecermos de fragilidade, da fragilidade que nos magoa ante a beleza tamanha da flor de cerejeira. É assim Daniel Faria na serôdia maturidade dos seus 28 anos. É assim nas palavras prenhes de vida e de morte, especialmente de morte, com que veste a sua humana metafísica de dúvidas. Era assim na sua figura frágil de eremita carregando o peso todo da sua condição inquieta.
De um livro lindíssimo - Legenda para uma casa habitada -, que tem a Igreja de Sta Maria, projecto de Álvaro Siza Vieira em Marco de Canaveses, como pano de fundo e publica os poemas com que Daniel Faria venceu o concurso A Casa de Deus (1990), retiro as palavras de Sophia, que lhe servem de prefácio (juntamente com as de Mário Cláudio e de Nuno Higino, co-autor do projecto (ele não gosta de o ser), enquanto pároco da paróquia onde foi construída):
“Não são versos apenas misteriosos mas versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós, poemas que nos inquietam um pouco, ou como diria Sócrates “que não nos deixam dormir”
Para que visses
Tão sinuosos como o interior dos búzios
E o dispersar assustado dos cardumes
Os olhos onde já não estão
Nem eles próprios nem outros
A florir
Versos que convocaam a vida entrelaçada das criaturas da natureza, às vezes tão leves que mal os compreendemos outras vezes tão reais que ouvimos o zumbido das abelhas e a sua cólera – ou o verso sobre a formiga que carrega a ordem e armazena a fadiga – ou o verso da flor tão lírico que brilha de evidência
Se fosse pássaro baterias as asas para destruir a armadilha
Se fosses insecto deixarias círculos apenas ao redor da luz
Se fosses abelha farias zumbir a revolta
Mas és voo pela sombra
Se fosses formiga carregarias a ordem, armazenarias a fadiga
Se fosses flor polinizarias a terra
Serias coroa incorruptível
Se fosses flor através das estações
Agora está morto e lembro claramente o corte de dor que me anunciou a sua morte. Era um poeta muito mais novo do que eu por isso muitas vezes fala uma linguagem desconhecida, mas a densidade dos seus poemas como uma aparição súbita mostra aqueles fragmentos que a nossa alma relembrará
Ainda que adormeçam os pastores
Não se há-de tresmalhar a canção
Do forasteiro
Sei bem que não mereço um dia entrar no céu
Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra”
Sophia de Mello Breyner Andresen
Acrescento este:
Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo
Do sangue no amor, o movimento para fora
O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos
Sentidos da palavra que sopra a sua voz
Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto
E encontro
O silêncio inigualável de quem escuta
Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual
Ao da cítara
Eu peneiro as entranhas e encontro a dor
De quem toca a cítara. A frágil raiz
De quem criva horas e horas a vida e encontra
A corda mais azul, a veia inesgotável
De quem ama
Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta
Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva
O músico incompleto peneira a ideia das formas
Eu sopro a água viva. Crivo
O sofrimento demorado do canto
Encontro o mistério
Da cítara
Daniel Faria
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5 comentários:
conheci daniel faria há não mais de cinco anos. estava na fnac e folheava, ao acaso, livros de autores que conhecia e de outros que pela primeira vez me tocavam as pupilas. impossível não me perder nos ribeiros que, cantando, embalavam a melancolia como desde antónio nobre (curiosa a tua referência ao "só" neste teu texto de uma poesis incrível) não via.
um abraço, jad!
Na altura da construção da Igreja do Marco, como é popularmente conhecida, ou a Igreja do Siza, como também é conhecida e visitada, diga-se de passagem, era pároco Nuno Higino que, como sabes, foi quem convenceu Siza Vieira a projectá-la. O então padre Nuno criou a Cenateca, uma associação cultural que se dedicava à promoção de eventos culturais (teatro, música, exposições de arte e publicação de livros) no espaço da Igreja. Foi aí que vi o Daniel. A descoberta da sua poesia fi-la com "Explicação das árvores e de outros animais" (1998), editado pela Fundação Manuel Leão e promovido pela Cenateca. Foi o deslumbramento. Não mais deixei de o visitar. E de me deslumbrar com essa metafísica existencial, profunda e triste, tão Nobre e tão Pascoaes, que ele soube dizer tão bem. O "Poesia" da Quasi agrupou livros e inéditos e facilitou a visitação num livro memorável. Pena é a dificuldade em encontrar-se.
Além do mais, ainda bem que gostaste da minha pequena homenagem.
Obrigado, poeta.
Jad:
desconhecia totalmente que o Daniel Faria já cá não estava...tenho alguns livros dele, gosto de o ler,pela sensibilidade que extravasam os seu poemas...
mas há como que uma branca em relação à sua morte. acho estranho não ter sabido dela, mas o que é certo, é que ao ler o teu post fiquei espantada. até sacudi a cabeça e tudo.
deixo-te um abraço e estes poemas dele:
FORAM PÉTALAS
Foram pétalas
Ou olhos de deusas
Que calquei?
Não,
Não me digam
Eu sei
Que foram Sonhos
Daniel Faria
In “Poesia”
...
PÓRTICO
Com os meus amigos aprendi que o que dói às aves
Não é o serem atingidas, mas que,
Uma vez atingidas,
O caçador não repare na sua queda
Daniel Faria
In “A casa dos Ceifeiros”
...
HISTÓRIAS DO PAÍS DE HELENA
Havia marinheiros no
No país de Helena
Que morriam ao pôr-do-sol
E havia Helena que sonhava
Fazer um dia tranças às ondas
E um berço muito grande para o mar
Daniel Faria
In “Oxálida”
Pois é, Em@, Daniel Faria está tão vivo nos seus poemas que nos é estranha a sua morte. É, de resto, estranha a morte aos autores que dizem sempre mais do que aquilo que dizem no momento em que o dizem. São imortais justamente porque aquilo que escrevem tem força suficiente para mobilizar novos leitores e, sobretudo, novas leituras, actuais, actuantes, oportunas, interventivas. É esse, estou em crer, o destino do Daniel. Os seus poemas hão-de sobreviver à sua morte que ocorreu na sequência de uma queda no choveiro. è essa a sua eternidade, se outra não houver.
Faltou dizer que estive para colocar no post o poema que colocate na tua primeira opção. Tão simples, tão profundo, tão belo. Até arrepia de emoção e, confessemos o pecado, de inveja.
Abraço, Em@.
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