A imagem é auto-suficiente. Basta-se a si mesma. Não exige leitores, não exige intérpretes, exige espectadores. O espectador está fora julgando estar dentro. Mesmo quando o espectador se julga envolvido na imagem permanece-lhe exterior na medida em que não há na imagem a equivocidade que resulta da polissemia que alimenta o texto e exige o leitor/intérprete. Seja o texto escrito, seja a realidade, seja a verdade, seja a obra de arte.
A TV, que, no dizer de Popper, é um “perigo para a democracia”, convoca espectadores e, ao fazê-lo, convoca consumidores de imagens, consumidores que, na sua passividade, conferem à imagem a plenitude do real. Por isso, ela é transparente: diz tudo imediata e plenamente. Pelo menos assim a vê o espectador. Como se a TV lhe oferecesse a realidade sem qualquer mediatização. Ao espectador, sentado confortavelmente no seu sofá, é destinada a realidade na sua transparência pura (não esta ou aquela mas a realidade). Sem equívocos ou mal-entendidos. A realidade tal qual é. Não como aparece mas como é. Nada na TV é aparente. Na TV desliza a realidade e o espectador é o seu destinatário. Recebe-a encantado e nesse encantamento permanece deleitado. Sem questionamento, sem perplexidade, sem dúvidas. Satisfeito. O mundo real está ao alcance do dedo que prime o botão no telecomando. Mesmo quando fragmentada pelo zapping é a realidade que tem à sua frente. A ela acede e assiste sem reservas e sem mácula.
Nesta transparência sem mácula nasce a autoridade do saber centrado na TV, i.e, o saber configurado na imagem que já não representa a realidade mas, simplesmente, é a realidade. A imagem-tv, que é a imagem-movimento, confunde-se com a realidade, melhor, identifica a realidade. E, neste processo identitário, dá-se uma inversão no processo mimético: já não é a imagem que mimetiza a realidade, é esta que mimetiza a imagem. Daí não só o fascínio que a imagem-tv exerce sobre o espectador, como a própria subordinação da realidade à TV. É o que dizem expressões como: “Isto (um qualquer acontecimento ou facto) parece mesmo como é na TV”. Repare-se: o acontecimento parece-se com o que acontece na TV, parece ser o que é na TV. Estamos, pois, perante uma nova inversão: não é a imagem-tv que é gerada a partir da realidade, é esta que encontra naquela a sua razão de ser. Esta inversão genética e ontológica credibiliza a passividade do espectador. Porque a realidade é o que passa na TV pode o espectador estar descansado: tudo está no seu lugar, tudo está justificado. Basta olhar e, imediatamente, vê. Sem mediação nem esforço. Sem palavras. A palavra é aqui excedentária, “supérflua” (Lazar, idem: 154), refém da imagem que se lhe impõe. Mesmo quando a palavra pretende ser síntese estruturante como o “é a vida”, que José Gil analisou, está subordinada à imagem. Esta serve à palavra o mundo que ela própria modela. O mundo que a palavra televisiva diz é o mundo que a imagem mostra. A palavra diz o mundo da imagem. E este dizer esgota-se na transparência da imagem-tv: nada mais há a dizer além do que a imagem mostra. E a imagem-tv mostra tudo, sempre e em todo o lado. Não é já a imagem-tv que espelha o mundo real, é este que espelha a imagem-tv. O modelo é a imagem-tv, não é a realidade. Eis uma terceira inversão: a realidade é vista segundo os modelos que a imagem-tv cria e mostra. Para o espectador a realidade da realidade é o que a imagem-tv mostra. Esta dimensão arquetípica da imagem-tv torna-a também critério de verdade: é verdade o que passa na TV. O que a imagem-tv mostra é a verdade na sua plena e absoluta universalidade . Todos viram o mesmo, portanto, todos sabem o mesmo. A verdade é válida para todos porque é absoluta a sua transparência na imagem que entra pelos olhos dentro. Nada fica de fora desse olhar panóptico e auto-referente. O mesmo olho que tudo vê (a câmara tv) é também aquele que tudo mostra (a tv) e nós somos os espectadores privilegiados a quem é oferecido tudo sem esforço, sem trabalho, sem dor. Ainda por cima, o telecomando torna-nos senhores do curso das imagens-tv: a qualquer momento podemos apagar ou fazer aparecer o mundo, a realidade. Este poder demiúrgico de criar ou eliminar não tem paralelo com a realidade. Nada na realidade surge ou desaparece com o clic no telecomando . Acontece com a imagem-tv e isso outorga ao espectador um poder sem limite: munido de telecomando pode decidir da guerra e da paz, da fome e da riqueza, da violência e do amor, do sexo e do desporto, da notícia e da ficção, etc. etc. Nada lhe é vedado porque nada existe fora da imagem-tv. O fora é seu clone.
Um outro aspecto ligado à transparência da imagem-tv afasta-a irremediavelmente da opacidade da linguagem natural: a dimensão do tempo e do silêncio.
A sequência torrencial de planos, de cor e de luz absorve de tal modo o espectador que lhe retira a possibilidade de sair da instantaneidade do momento. O espectador é, então, engolido na vertigem do momento que a imagem-tv esgota na sua transparência. Tudo acontece naquele instante, tudo se esgota naquele momento. Nada há a descortinar porque não há cortinas a cobrir a realidade. Esta aparece escancarada na imagem-tv sem segredos nem reservas. Plena e sempre nova a cada instante. Sempre presente, sempre no presente. Do presente se alimenta a imagem-tv exibindo tal voracidade que nada lhe escapa. Nada sobra do tempo. Apenas a instantaneidade do presente se ajusta ao permanente sequenciar que na imagem-tv se consome. Sem convocar o passado, sem apelar ao futuro a imagem-tv empanturra-se dos permanentes instantes que produz. Neles se empanturra também o espectador embevecido (e, muitas vezes, imbecilizado) perante tamanha e luminosa transparência. E gosta. E deleita-se inebriado no brilho do acontecer sem história pronto a usar. Instantâneo.
A imagem-tv abomina o silêncio, o vazio, a ausência, o não-ser. Abomina-os porque eles promovem o regresso do espectador a si próprio. E, neste regresso, o espectador deixa de ser simples consumidor e torna-se sujeito. E pensa. E inventa. E cria. E vê-se, na sua historicidade, envolvido no processo de inteligibilidade do real, inventando teorias, criando teoremas, músicas, artes. Descobre-se humano no devir do tempo que faz a sua historicidade. É certo que é o presente a dimensão temporal que vive. Mas, tornado sujeito, sabe que o seu presente não se basta a si mesmo. É herdeiro de todos os presentes-passado, que anunciam os presentes-presente e igualmente os presentes-futuro. Ele sabe e este saber faz toda a diferença. Não só a historicidade marca indelevelmente a fragilidade humana, como o silêncio, o vazio, a ausência e o não-ser justificam as tradições místicas no ocidente e no oriente, as técnicas de meditação centradas no “vazio absoluto” ou na busca da “‘luz branca’da nulidade pura” (cfr. G. Steiner, 2002: 36), a música, esse “silêncio interrompido” em que “cada uma das notas que nasce e se extingue permanece em diálogo com o silêncio” (idem: 149) e nele busca a fonte donde tudo brota (cfr. Idem: 157), a arte, onde “o silêncio se ilumina e a luz faz-se silêncio” (idem: 155) ao mesmo tempo que “torna manifesto o não declarado” (idem: 153), a linguagem na qual “os sentidos de uma palavra estão na sua história, tenha esta sido ou não escrita” (idem: 162). Com efeito, “quando aprendemos ou empregamos uma língua, cada uma das suas palavras chega até nós com o seu peso mais ou menos incomensurável de precedentes. Se pertencer à linguagem corrente, acrescenta Steiner, terá sido pensada, dita e escrita milhões de vezes” (ibidem). “A linguagem é o seu próprio passado” (ibidem) e é essa densidade histórica que a torna plurívoca. “Pensada, dita e escrita milhões de vezes” a linguagem fez-se à medida que nela nos fazíamos e fazíamos o mundo. Por isso também no sentido que dizemos na linguagem não está apenas o nosso dizer, está também o daqueles que, antes de nós, usaram a língua que nos faz e nos fala . É que “a nossa existência, a consciência de si da cada um de nós, são lançados na linguagem” e uma vez que “não fomos nós que escolhemos essa linguagem” (ibidem) mas nela nascemos, nela habitamos, nela guardamos a memória, nela nos fazemos “pastores”, de cada vez que falamos, lemos ou escrevemos não convocamos apenas a memória como o outro em nós, supomos igualmente o outro como finalidade da linguagem natural em que vivemos. Vivemos e nos compreendemos. Vivemos porque nos compreendemos na relação comunicacional com o outro. Supor uma linguagem desprovida de sentido para o outro é um absurdo. A linguagem não é um exercício solipsista e autocrático que cada um pudesse guardar apenas para si. Pelo contrário, como Steiner acentua, “a linguagem existe [...] porque existe o outro” (Steiner, 1993: 122).
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2 comentários:
Jad, já há dias queria comentar aqui, estava com tempo curto e esse texto exige tranquilidade.
No post anterior, considerei a visão do Elenáro, entendendo que ele tem alguma razão sobre cada um ter uma opinião/interpretação sobre a imagem vista.
Mas nesta segunda parte, esclareces muito bem ao que te referes quando falas da imagem-tv. E a isso, concordo contigo. O texto aborda bem a intenção com que a imagem nos é apresentada, ou seja, o imediatismo da resposta, sem que precisemos refletir sobre ela, sem que tenhamos um tempo para emitir qualquer julgamento. Pois o julgamento (ou reflexão) são feitos a posteriori, mas como fazê-lo se, em seguida, já nos inundam com outras imagens?
Muito interessante a referência sobre o saber centrado na TV, nos faz perceber o perigo de conhecer só o que nos é mostrado pela imagem, "conhecimento" (se é que assim podemos chamá-lo) facilmente manipulável, e que tem direcionado tanto as massas.
Gostei sobremaneira da parte em que falas do silêncio, do regresso ao não-ser, ao sujeito. Muito bom poder refletir sobre isso quando o mundo nos soterra em tecnologias de imagens e sons, numa pirotecnia de informações que mais alienam do que informam.
(não vou me estender mais, porque o comentário já está gigantesco e eu poderia ficar horas por aqui..rs)
mas estou gostando muito de ler, já espero o próximo
grande abraço
Obrigado, Andrea, pela amabilidade das tuas palavras.
Creio teres batido no ponto em relação à imagem-tv e ao alheamento de nós que ela instiga.
A este propósito vale a pena recordar a personagem interpretada por Peter Sellers em "Wellcome Mr. Chance". Peter Sellers desempenha o papel de um jardineiro numa mansão. Competente, dedicado e de uma evidente imbecilidade o jardineiroalimenta o seu mundo em dois grandes interesses. Um é a jardinagem. Outro é o que recebe das imagens da TV, que ele afasta sempre que lhe sejam desagradáveis. Na casa há ecrãs de TV por todo o lado e esta personagem anda sempre com um telecomando no bolso. Quando os proprietários da mansão morrem e o jardineiro se vê pela primeira vez na sua vida na rua, o seu aspecto é de um lord, bem vestido e respeitável. O choque com a vida real é tremendo. Logo à porta da mansão, surge um grupo de marginais, que o ameaçam com facas. O jardineiro recorre então ao telecomando que traz no bolso e clica freneticamente. Só que desta vez não consegue mudar de canal, não consegue fazer desaparecer aquelas figuras desagradáveis, cada vez mais ameaçadoras.
Este exemplo constava numa nota de rodapé do texto e que não apareceu no post.
Bem-vinda, como sempre.
Abraço
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