A linguagem existe para falarmos, para nela nos fazermos. Razão tinham os gregos primeiro e Heidegger depois quando pensaram o homem como “aquele que fala”. De facto, é no dizer que supõe o outro como destino que se cumpre a dimensão humana por excelência: somos o que somos na medida em que, conscientes da fragilidade do nosso devir histórico, nos inventamos continuamente na linguagem que falamos. Nela inventamos o mundo no confronto dialógico com o outro. No encontro com o outro. Assumir a presença do outro em nós é, simultaneamente, assumir possibilidades que estão aquém ou além do nosso modo subjectivo de ser. Assumir o outro é assumir a diferença, o múltiplo, o complexo. Colocados no seio da linguagem, assumir o outro é assumir a possibilidade de o sentido nos escapar justamente porque ele se multiplica de cada vez que o outro dele se acerca. Porquê? Todos conhecemos a resposta: primeiro porque o mundo, a realidade são polissémicos ou, como Ricoeur prefere, “plurívocos” e, na sua plurivocidade, passível de múltiplos sentidos, de múltiplas vozes que se fazem ouvir de cada vez que o leitor/ouvinte o interpela. Por isso, o mundo, a realidade, o ser, o dizer são opacos e na sua opacidade suportam múltiplas leituras . Depois, porque o leitor/ouvinte é capaz de compreender o que é dito na interpretação que dele faz. Há aqui, por conseguinte, dois momentos essenciais no ler/ouvir: primeiro, é preciso ler o que está escrito, é preciso ouvir o que é dito; é, pois, necessário conhecer a língua em que se diz, é necessário conhecer a gramática do dizer. Segundo, é necessário ler o que não está escrito, é necessário ouvir o que não é dito. Este é o momento privilegiado da leitura que também é interpretação. O momento em que se dá vida ao sentido que, embora presente no dizer, estava ausente no ouvir. Por isso, o ouvir é tão importante para o dizer .
Quem diz espera ser ouvido. Mas espera também de quem ouve não apenas a disponibilidade de ouvinte mas igualmente a de falante. Desde que, evidentemente os falantes estejam habitados pelo “desejo de intercompreensão” (Habermas), que alimenta o processo dialógico, orientado para a construção intersubjectiva do saber. Caso contrário, o falante proclama o seu saber, ciente da dispensabilidade do ouvinte. Em boa verdade, o ouvinte é-lhe completamente indiferente. Não lhe faz falta. O falante, senhor absoluto do saber absoluto, fala para si, apenas para si, talvez apenas de si. Por isso, nunca se engana, nunca erra.
Todos o sabemos: o saber absoluto é um atributo dos deuses. Nós não somos deuses. Somos homens. E porque somos homens buscamos continuamente o sentido entre os sinais que a opacidade do real vai consentindo, que vai tornando possível no jogo hermenêutico que se desenvolve entre o leitor/ouvinte e o texto/falante . Múltiplos são os sinais, múltiplas são as leituras. Com efeito, “na linguagem natural os meios verbais e gramaticais do sentido nunca são inteiramente puros. É isso precisamente que distingue a linguagem natural da linguagem simbólica, dos códigos informáticos e da formulação matemática” (G. Steiner, idem: 173). E, acrescente-se agora, da imagem-tv. De facto, embora de natureza diferente, tanto a linguagem simbólica, os códigos informáticos e as formulações matemáticas quanto a imagem-tv são transparentes e, na sua transparência, dispensam ou até excluem o outro. A imagem-tv porque dele apenas convoca a sua passividade consumidora; as linguagens formais porque, na sua univocidade e abstracção, são indiferentes ao devir que caracteriza o modo humano de ser histórico. São universais e abstractas. O seu valor é indiferente ao sujeito que delas se serve. De nada lhes importa quem as usa e as circunstâncias em que o faz. São indiferentes ao contexto e são auto-referentes.
Diferente é a linguagem natural. Na sua complexa plurivocidade convoca leitores, convoca intérpretes que, no seu labor reflexivo, tornem manifestas as franjas do sentido habitando a complexidade do real. Na sua opacidade não é simples nem unívoca. Possibilita, antes, diferentes modos de ser, pensar, dizer e fazer. Diferentes tonalidades do sentido, construídas na capacidade humana de se fazer no tempo que flui. É este viver o tempo que, simultaneamente, é e não é, que, permanentemente, se faz e refaz em cada gesto, em cada som, em cada dizer portadores de sentido, que justifica o homem. É também essa vivência do tempo que justifica a educação e o pensar que dela fazemos. Com efeito, educar é mobilizar todos os recursos possíveis para ajudar o outro a crescer, para estimulá-lo a fazer-se livre na sua historicidade, caminhando com segurança para a adultez. E, se se encontra justificada na capacidade de intervenção no aqui e agora em que vivemos, a educação, sob risco de se tornar estéril na sua função, deve mobilizar modos de ser, pensar, dizer e fazer que alimentem o mundo em que nascemos.
A razão de ser da educação centra-se, então, no modo como actualiza, i.e, como torna actuante no presente a herança recebida do passado. É que, como Hannah Arendt afirma num texto de 1957, a essência da educação “é o facto de os seres humanos nascerem no mundo” (2000: 23) e “uma vez que o mundo é velho, sempre mais velho do que nós, aprender implica, inevitavelmente, voltar-se para o passado […]. A educação é assim, continua Hannah Arendt, o ponto em que se decide que se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, mais ainda, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens” (idem: 52). E porque “não é possível educar sem ao mesmo tempo ensinar […] mas podemos facilmente ensinar sem educar e podemos continuar a aprender até ao fim dos nossos dias sem que, por essa razão, nos tornemos mais educados” (ibidem), a competência do professor “consiste em conhecer o mundo e em ser capaz de transmitir esse conhecimento aos outros. “ (idem: 43). Os outros que, no ensino secundário, onde, no dizer de Steiner (2004: 75), “se travam as lutas decisivas contra a barbárie e o vazio” são adolescentes, cujo mundo se faz preferencialmente na imagem, sobretudo TV e informática. Inevitavelmente, como vimos, é um mundo distinto do do adulto e com ele conflitual.
Eis, pois, justificada a educação e a relação pedagógica que lhe é íntima. O outro, enquanto seu destinatário em permanente construção solidária, impõe-a, a opacidade da linguagem, como razão de ser de todo o esforço de compreensão e esclarecimento inter-subjectivos do sentido que a educação deve perseguir, exige-a e o saber com que se constrói a tradição na qual nos fazemos e reconhecemos homens, inventando utopias com a marca da nossa historicidade alimentam-na. Nascemos capazes de nos fazermos homens. Na nossa fragilidade assumida fazemo-nos uns com os outros, num mundo que se nos antecipa, numa língua que não inventámos. Assim nos fazemos, assim aprendemos, assim ensinamos.
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1 comentário:
texto excepcional
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