1. Autonomia da escola
Desde as pombalinas expulsão dos jesuítas, a Directoria Geral de Estudos (ambas de 1759) e a Real Mesa Censória (1771) sempre o Estado em Portugal procurou, de uma forma mais ou menos formal e explícita, controlar a educação e o ensino. Para isso, foi criando estruturas de fiscalização e de controlo e, sobretudo, produzindo normas legais que sustentassem essa sua vocação controladora. Dito de outro modo: o Estado, ciente do poder que o saber representa, foi criando condições de controlo do saber de modo que dele pudesse dispor no seu exercício de domínio .
Mesmo no pós-25 de Abril, na democracia institucionalizada, esse desejo de manter o saber sob controlo continuou a alimentar a produção normativa e normalizadora .
É, de facto, a preocupação normalizadora e, por conseguinte, universalizadora e uniformizadora (Foucault, 1975) e disciplinadora (Gil, 1979) que norteia a estruturação do ensino e da educação que se fazem na escola. Por isso, apesar da liberdade e a autonomia constituírem valores referenciais da Constituição da República, foi preciso esperar três anos após a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei nº 46/86, de 14 de Outubro), onde eram já invocados níveis de participação de todos os implicados no processo educativo e de interligação com a comunidade, bem como, nos seus artigos 2º e 3º, era definida a organização do sistema educativo segundo os princípios da democraticidade e participação “através da adopção de estruturas e processos participativos na definição da política educativa, na administração e gestão do sistema escolar e na experiência pedagógica quotidiana, em que se integram todos os intervenientes no processo educativo, em especial os alunos, os docentes e as famílias” (artº 3º, alínea l).
Com efeito, é com o decreto-lei nº 43/89, de 3 de Fevereiro que se inicia o processo legislativo com que se pretende instituir e institucionalizar a autonomia das escolas. Está aberto o caminho. Falta percorrê-lo. Melhor: falta fazê-lo. E, para fazê-lo, o Estado produz normas, com as quais organiza e normaliza o processo instaurador da autonomia. Vão neste sentido o decreto-lei nº 115/98, de 4 de Maio e, dez anos mais tarde, o decreto-lei nº 75/2008, de 22 de Abril, que o actualiza e revoga. Com estes normativos temos a “autonomia decretada” (Barroso). Falta, contudo, construí-la. É que, como Guilherme de Oliveira Martins sintetiza (2006: 49) “dotar as escolas de uma autonomia autêntica significa contribuir para que a liderança, o projecto educativo, a comunidade escolar e a qualidade se afirmem como indutores de melhores aprendizagens, de melhor desenvolvimento pessoal e social e de mais coesão”. Com efeito, “dotar as escolas de uma autonomia autêntica” supõe que é igualmente possível uma autonomia não autêntica. Ora, esta dupla possibilidade configura um plano de autonomia que João Barroso designa como “autonomia decretada” (o plano “da definição política e do ordenamento jurídico e administrativo sobre as atribuições, competências e modos de governo das escolas” (2006: 23). É a “dotação” da autonomia das escolas por parte da tutela e corresponde, em larga medida à descentralização. Configura igualmente o plano que Barroso chama de “autonomia construída” (o plano “das dinâmicas sociais que em cada organização e para lá das determinantes político-administrativas produzem formas de regulação autónoma” (Ibidem). É a autonomia “autêntica”.
A difícil autenticidade da autonomia das escolas, sempre amarrada às limitações impostas pelo receio da tutela perder algum poder, por pequeno que seja, assemelha-se à história daquela criança que, de mochila às costas, vai andando à volta do bairro onde vive com os pais sem nunca atravessar a rua. O polícia, intrigado com o estranho comportamento da criança, aproxima-se e pergunta-lhe o que se passa. A criança com ar decidido esclarece: “sabe, senhor guarda, eu fugi de casa mas o meu pai proibiu-me de atravessar a rua”. Autónomo na decisão, preso na execução!
Atravessar a rua comporta riscos. Riscos para quem atravessa, riscos para quem, podendo impedir, permite tal travessia. Riscos que, na escola, é necessário e desejável correr se se quiser escapar à monótona rotina da estabilidade cimentada em normativos desejosos de tudo organizar e normalizar, típicos da racionalidade burocrática, receosos da inovação e incapazes de responder adequada e oportunamente ao imprevisto e à mudança. Neste sentido, assumir riscos implica o reconhecimento dos limites próprios e circunstanciais em que se desenham objectivos e projectos, a afirmação do desejo de superação desses limites e a crença em que se é capaz de consegui-lo. Implica, igualmente, que a tutela confie na capacidade mobilizadora das escolas com vista à consecução das finalidades e objectivos que, no dizer de Barroso (idem: 44) compete à escola pública salvaguardar: “o pleno direito à educação e o acesso a uma cultura comum, para todas as crianças e jovens, em condições de equidade, de igualdade de oportunidades e de justiça social”.
É na salvaguarda destes propósitos que se joga o equilíbrio necessário e desejável entre o Estado, que identifica, promove e tutela a “cultura comum” e as “condições de equidade, de igualdade de oportunidades e de justiça social” e as escolas que operacionalizam esses princípios e desígnios no contexto e circunstâncias em que a educação se desenvolve.
A autonomia das escolas constrói-se, pois, na inter-relação entre os sujeitos, as entidades e organismos envolvidos no processo educacional, que se orienta para a promoção da cidadania, que se faz no crescimento pessoal, mental e social daqueles que são a sua razão de ser: os alunos. A eles se destina a escola. Mas não são eles quem a define, como não são eles os autores da sua própria formação, nem são eles a determinar os princípios, as finalidades, os níveis e os saberes que suportam a sua formação e crescimento pleno.
Os alunos, crianças e jovens, não nascem crescidos. Fazem-se no confronto, simultaneamente mimético, referencial, reverencial e rebelde, com os adultos, que lhes servem de modelo -uns- e/ou de anti-modelo -outros. De uma forma ou de outra, é com eles e/ou contra eles que as crianças e jovens adolescentes se formam. Daí esta dificuldade essencial da educação: como conciliar a autonomia e liberdade necessárias à descoberta, como condição fundamental da aprendizagem e do crescimento pleno, equilibrado e harmonioso, com a autoridade, indispensável ao equilíbrio social e, acima de tudo, à afirmação de saberes e valores que nos identificam como cultura, nação ou civilização?
Do mesmo modo que não é a criança a escolher o remédio (“pharmakon”) com que tratar a gripe, nem é ela quem decide se deve ou não tomá-lo, também não lhe compete escolher o que deve aprender e/ou se deve ou não aprendê-lo. Não lhe compete, pois, escolher o “pharmakon” para a alma (Platão, Fedro). São os adultos quem escolhe e decide o que ensinar e o que aprender. Compete, pois, aos adultos transmitir os saberes e valores, reconhecidos essenciais ao nosso percurso colectivo, social e humano. São as crianças e adolescentes quem aprende os saberes e valores indispensáveis ao seu crescimento até à adultez. Chegados aqui serão eles a ensinar e a transmitir saberes e valores às crianças e adolescentes que serão adultos, que transmitirão..., que aprenderão... que transmitirão... que aprenderão...
Bibliografia referenciada
AAVV 2006 A autonomia das escolas, Lisboa, F. C. Gulbenkian
BARROSO, João (2006) “A autonomia das escolas: retórica, instrumento e modo de regulação da acção política”, in AAVV (2006) A autonomia das escolas, Lisboa, F.C.Gulbenkian, pp 23-48
BARROSO, João (2004) “A autonomia das escolas: uma ficção necessária” in Revista Portuguesa de Educação, 2004, 17(2), pp 49-83
CARVALHO, Adalberto (1994) Utopia e educação, Porto, Porto Ed.
CARVALHO, Adalberto et alt (1993) A construção do projecto de escola, Porto, Porto ed
CARVALHO, Rómulo (1986) História do Ensino em Portugal, Lisboa, F. C. Gulbenkian,
DAMAS, José A (1997) A Educação como comunicação normativa, Penafiel, ISPP
GOMES, Joaquim F. (1984) Estudos de História e de Pedagogia, Coimbra, Livraria Almedina
LIMA, Licínio C. (1992) A escola como organização e a participação na
organização escolar, Braga, Un. Minho,
STEINER, G., LADJALI, C (2004) Elogio da Transmissão, Lisboa, D. Quixote
TORGAL, Luis R. (1993) "A instrução Pública" in História de Portugal, Quinto Volume, 609-652, Lisboa, Círculo de Leitores
sábado, 5 de junho de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Interessante o conceito de «autonomia decretada»; tipo «és livre de fazer tudo o que eu mandar, mas livra-te de não o fazeres!»
Um abraço.
Nem mais, Tacci, nem mais.
Enviar um comentário