quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Sapere aude!

"Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].
[…]
Para este esclarecimento [Aufklärung], porém, nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento [Aufklärung]? Qual não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento [Aufklärung] entre os homens. O uso privado da razão pode, porém, muitas vezes, ser muito estreitamente limitado, sem contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento [Aufklärung]. Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado. Ora, para muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade total, chegando até a sociedade constituída pelos cidadãos de todo o mundo, portanto na qualidade de sábio que se dirige a um público, por meio de obras escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que por isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo".

Kant, E Resposta à Pergunta: Que é esclarecimento []?

2 comentários:

tacci disse...

Sempre gostei muito deste texto porque coloca a questão da obediência tida como necessária (no uso privado da razão). Com um monarca ele próprio esclarecido, quer dizer, racional e culto, o problema resolve-se por si mesmo: o engenheiro contribui obedientemente com a sua razão para a construção do TGV, mesmo que não concorde com ele.
Qual é o momento a partir do qual esse engenheiro tem direito a ser objector de consciência?
E a partir de que momento teremos de o perdoar se se torna num sabotador?
Costuma-se distinguir: tem direito, como no caso dos franceses ou dos gregos durante a invasão nazi, ou seja, sob a tirania.
A ETA e o IRA não têm, porque se inserem em sociedades democratas.
O problema de Antígona permanece, no entanto, porque não é ela quem define o regime que lhe exige a obediência. É o próprio Egisto quem proclama que a democracia é ele.
À engenheira Antígona, com o pacote de explosivos ali mesmo à mão, só resta o imperativo categórico, não é?

Um abraço.

jad disse...

Bom dia, Tacci.

Chega atrasado o meu apreço pelo teu comentário ilustre. O vento e a trovoada taparam-me o acesso à net, entre outras pequenas coisas.

Não sou propriamente um kantiano mas este texto, que foi o primeiro que li de Kant, não me tem largado. Creio que o meu apreço não está apenas no fundamental imperativo "Sapere aude!". Tem a ver também com o necessário equilíbrio entre o exercício livre do pensar e o interesse social, que, muitas vezes, se sobrepõe ao particular. É nesta altura de conflito que a universalidade do imperativo se contextualiza e o sujeito racional pode decidir suspender o "sapere aude!". Pode ou deve? E voltamos a Antígona, não é?

Abraço.