Estive sem computador durante uma semana e acesso incipiente à Internet. Esta impossibilidade tecnológica justifica o meu silêncio a propósito de uma das mais interessantes iniciativas promovidas pela CM de Penafiel. A Escritaria homenageou, nesta segunda edição, José Saramago. Entre colóquios, teatro, cinema e animação de rua desenvolveu-se, entre os dias 15 e 18 de Outubro, uma actividade cultural, pouco habitual nas cidades portuguesas e muito menos em cidades pequenas de província, que culminou com o lançamento mundial de Caim, o mais recente romance de Saramago, e com as mais de duas horas e meia de autógrafos aos vários livros que cada pessoa lhe apresentou no fim da sessão de lançamento. E eram mais de três centenas.
Não é meu propósito falar de Caim. Não é igualmente meu propósito participar na polémica que se está a instalar com a igreja católica. O meu propósito prende-se com um episódio passado na tarde de domingo (18.10.09), que me parece merecer uma reflexão. Passo a contar.
Na sequência de intervenções apologéticas da obra e da pessoa de Saramago pelos intervenientes dessa tarde, o autor homenageado agradeceu, introduziu alguma água na fervura apologética e a dado momento contou o seguinte: “Vou dizer-lhes uma coisa de que a Pilar não vai gostar. Há já algum tempo fomos a Itália. Eu fui dar uma conferência à Universidade de Pádua e, durante os cumprimentos, referindo-se à minha mulher [que na véspera tinha apelidado como “a minha meia laranja”] um professor diz: “Ah! A mítica Pilar”. Ela não gosta mas não há nada a fazer. Estar casado com um mito é qualquer coisa de extraordinário. Não há nada a fazer. Ela é um mito e eu gosto disso”. Mais adiante, depois de Pilar o ter interrompido para falar da Fundação José Saramago, exclamou: “Vejam a sorte: é um mito que fala”.
É aqui que se coloca a minha reflexão: o mito e a sua desmitificação. É consensual a ideia segundo a qual a obra de Saramago se ocupa da desmitificação dos mitos comuns do ocidente, seja qual for a sua natureza. (Essa foi, de resto, a ideia defendida numa das intervenções da tarde de sábado). Ora, se analisarmos o episódio de Pádua não deixa de ser interessante verificar quanto Saramago valoriza os mitos. Desde que possa viver com eles e que falem. É aqui que nasce o equívoco.
Saramago espanta-se com a sorte de o “seu” mito falar. Conhece certamente a avisada sentença de Pessoa: “Um mito é um nada que é tudo”, conhece certamente os estudos de Cassirer, de Barthes, de Strauss, entre outros, e a dimensão cosmogónica que lhe é atribuída. Conhece certamente a função simbólica do mito e, por isso, a sua função dinamizadora da integridade pessoal e socio-cuultural. Ora, tudo isto apenas é possível porque o mito fala, o mito diz, de geração em geração, o que é fundamental, o que é vital para a comunidade que o reconhece. Para a comunidade e não para o indivíduo. Não há mitos individuais. Os mitos são colectivos porque dão sentido ao cosmos, ao mundo, à vida. Também de Saramago. Mesmo que o mito se chame Pilar e ele goste.
Barthes mostrou bem a importância dos mitos na sociedade de consumo e na cultura de massas (e Mitologias é de 1957 !...). Mostrou igualmente quanto dessa importância resulta daquilo que “está perfeitamente de acordo com a sua etimologia: o mito é uma fala” (BARTHES, R (1978) Mitologias, Lisboa, Ed 70: 181). E porque é uma fala “é um sistema de comunicação” (ibid). E porque é um sistema de comunicação diz o que dá sentido a uma época, uma cultura, um modo de ser, de dizer e de fazer. E é este processo identitário que nos fez ao longo do nosso humano caminhar. Lado a lado com o mais elevado exercício racional, lado a lado com a filosofia e a ciência. Foi assim com Platão, foi assim com Nietzsche, foi assim com Einstein. Sem os mitos não teríamos certamente saído da caverna. Apenas com eles não teríamos certamente chegado à lua. É, pois, estranho o empenho desmitificador de Saramago. É estranho o orgulho embevecido pelo mito com que vive. Sem reservas. É estranho querer desmitificar os mitos recorrendo a processos em si mesmos efabuladores e mitificadores na promoção identitária com as personagens romanescas. É estranho inventar mundos habitados por blimundas e baltazares e querer prendê-los ao grilhão da materialidade física. É estranho. É estranho ele não estranhar.
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4 comentários:
Como sempre, um excelente post, jas. No entanto, penso que o papel desmistificador de Saramago se refere apenas ao mito da Igreja Católica, nem sequer aos mitos Cristãos.
E neste sentido até percebo onde Saramago quer chegar com o episódio que referiu. Penso que ele quer dar a ideia de que os mitos somos nós que os criamos.
Mas concordo com o que diz acerca dos mitos em geral. Em grande parte são eles que nos levam à descoberta.
Uma vez mais, obrigado, Elenáro.
O episódio que Saramago contou na Escritarias (que ao fim da tarde de domingo com o cansaço, suponho eu, chamava "Escriturárias") é, para mim, exemplificador dessa ambivalência em relação aos mitos: por um lado, são criação humana e, nesse sentido, elevam-nos além da nossa simples humanidade material; por outro, necessitamos deles como um conforto, como um poiso, se quiser, como um regaço onde recolher a nossa fragilidade. Se esse regaço se chamar Pilar del Rio, tanto melhor. O problema é que me parece que Saramago aprisiona os mitos à sua concepção materialista reduzindo-os, deste modo, a um simples recurso compensador da impossibilidade imediata de saber. Como se confiássemos à ciência a importância de todos os trabalhos filosóficos e poéticos. A filosofia e a poesia estão aquém e além da ciência. Também a religião e os mitos. Podemos tentar explicá-los mas estaremos sempre aquém da sua dimensão e profundidade. Mas, claro, isto escapa ao autor de Caim que não admite nada mais do que aquilo que ele pode entender. E não é tudo. Obviamente.
Obrigado, Elenáro. Abraço.
"por um lado, são criação humana e, nesse sentido, elevam-nos além da nossa simples humanidade material; por outro, necessitamos deles como um conforto, como um poiso, se quiser, como um regaço onde recolher a nossa fragilidade." - jad
Neste sentido, nada melhor que ir aos Gregos buscar a sua ideia e concepção de divindade. Eles estavam cientes da realidade das coisas e não deixavam, contudo, de adorar os seus Deus. Aliás, é muito interessante analisar a relação Homem-Deus(es) que existia na mitologia Grega.
Um abraço, jad.
Certamente, Elenáro. Os gregos criaram uma matriz que nos coloca, enquanto homens, no caminho emparedado entre os deuses e as coisas e, neste caminhar buscaram as questões fundamentais que nos têm alimentado ao longo da nossa história europeia (na ìndia, China, Japão a história é outra, como sabemos). Contudo, essa busca grega, sobretudo com Sócrates, Platão e Aristóteles e seus herdeiros, ao mesmo tempo que trazia a filosofia "do céu para a terra" também abriu caminho a um desencantamento do mundo, que habitava os poetas e alguns pré-socráticos. É nesse encantamento que moram os mitos e que, por exemplo, Nietzsche salvaguarda na sua própria racionalização filosófica.
O regresso aos gregos é sempre marcante mas não me parece que a racionalização que se desenvolveu a apartir dos gregos que nos baste na nossa busca pelo sentido do homem e do mundo. Permita que cite Deleuze: "O que limita o verdadeiro não é o falso mas o insignificante". O sentido escapa a toda a tentativa de o aprisionar numa qualquer explicação. Está sempre aquém e além. É o reencantamento (o dewencantamento aconteceu sobretudo com a autocracia da razão moderna). Por isso, Elenáro, circunscrever o Ser à sua imanência racional humana é, com as devidas distâncias, semelhante à recusa de os professores de Pisa se recusarem a olhar pelo telescópio de Galileu para não verem as manchas solares. Pessoalmente, prefiro espreitar por todos os telescópios e não apenas pelo da razão. Limite meu, certamente.
Grato, Elenáro, pela sua participação e partilha.
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