Projecto e diferença
No seu capítulo II – Regime de autonomia – artigo 8º, §1 o decreto-lei 75/2008 de 22 de Abril refere que “a autonomia é a faculdade reconhecida ao agrupamento de escolas ou à escola não agrupada pela lei e pela administração educativa de tomar decisões nos domínios da organização pedagógica, da organização curricular, da gestão dos recursos humanos, da acção social escolar e da gestão estratégica, patrimonial, administrativa e financeira, no quadro das funções, competências e recursos que lhe estão atribuídos”. Acrescenta no artigo seguinte, §1 que “o projecto educativo, o regulamento interno, os planos anual e plurianual de actividades e o orçamento constituem instrumentos do exercício de autonomia [...]”, bem como (§2) o relatório anual de actividades, a conta de gerência e o relatório de auto-avaliação (estes “para efeitos de prestação de contas”) e o “contrato de autonomia” que constitui “o [seu] instrumento de desenvolvimento e aprofundamento”. Por outro lado, esclarece (§1, alínea a) que o “projecto educativo” é “o documento que consagra a orientação educativa do agrupamento de escolas ou da escola não agrupada, elaborado e aprovado pelos seus órgãos de administração e gestão para um horizonte de três anos, no qual se explicitam os princípios, os valores, as metas e as estratégias segundo os quais o agrupamento de escolas ou escola não agrupada se propõe cumprir a sua função educativa”.
O projecto educativo corresponde, assim, não apenas a um dos “instrumentos de autonomia” mas o documento essencial da autonomia e da função primordial da escola: a educação. Com efeito, o projecto educativo “consagra a orientação educativa” e explicita ”os princípios, os valores, as metas e as estratégias” a partir das quais as escolas se propõem “cumprir a sua função educativa”.
O projecto educativo constitui, por conseguinte, a pedra basilar sobre a qual se constrói todo o edifício educativo centrado na escola que se pretende portadora de valores, dinamizadora de saberes, integradora de diferenças, promotora do crescimento pessoal, mental e social daqueles a que se destina – as crianças e adolescentes – com vista à construção de homens livres, como temos vindo a acentuar.
Nesta perspectiva, Adalberto D. Carvalho considera que “o projecto educativo constitui a espinha dorsal da autonomia [da escola], seu fundamento e seu reflexo. Ele marca sobretudo a passagem de um sistema educativo de estrutura vertical [...] para um sistema de regulação horizontal que aspira a ser o intérprete do reconhecimento não discriminatório das diferenças. Diferenças entre os alunos, diferenças entre os professores, diferenças entre as escolas. Esta será, aliás, a única base possível de uma igualdade autêntica e educativamente consequente” (1993: 5). Com efeito, apenas na diferença se justifica a educação e a escola . Se todos fôssemos iguais, se todos soubéssemos o mesmo, nada haveria para ensinar e para aprender. É, pois, na diferença, no seu reconhecimento e respeito que a dimensão educativa da actividade pedagógica, encontra a sua razão de ser. Por conseguinte, tudo o que diga respeito à escola (organização, currículo, projecto, acção) passa necessariamente pela assunção da diferença como critério essencial do seu modo de ser e de agir.
É essencial, pois, que a escola assuma que há crianças, jovens e adultos, professores e alunos, escolas urbanas e escolas rurais, em meios favorecidos e em meios desfavorecidos; que há quem sabe e ensina e quem não sabe e aprende; que aprender através de imagens é diferente de aprender através de textos, que estimular a busca autónoma pelo saber é diferente do ensino repetitivo e autómato, que, enfim, repetir modelos é diferente de criar projectos autónomos. Consoante a escolha que fizermos assim nos orientaremos para processos organizacionais, pedagógicos e educativos distintos. Uns privilegiam a transmissão e nela se centram, manifestando alguma (ou muita, como no caso do modelo burocrático) desconfiança pela mudança ao mesmo tempo que nutrem da sua fixação no passado com modelos pedagógicos e educativos centrados no professor, como voz mecânica desses saberes fixos, seguros, dominantes e conservadores. A escola, nesta perspectiva, tem a função de conservar o saber dominante transmitindo-o de modo uniforme e constringente. As pedagogias directivas tradicionais têm aqui o seu chão propício.
Pelo contrário, a escola pode escolher a ruptura com o passado, com a tradição e promover a inovação permanente, numa frenética luta contra tudo o que se assemelhe ao passado, à tradição, responsabilizados pelos males de que é preciso curar e contra os quais é preciso imunizar as gerações aprendentes. A escola nova nasceu e cresceu neste modelo e as pedagogias não directivas também. De facto, centrando a actividade pedagógica e educativa no aluno e a função da escola na aprendizagem obsessiva pelo novo, esvazia-se a ligação das novas gerações aprendentes com as gerações que lhes deram origem tornando-se indivíduos sem história, i.é, sem a dimensão que nos faz homens: a nossa historicidade, a consciência do tempo e do espaço em que nos fazemos uns com os outros. Arriscamo-nos, portanto, a criar indivíduos órfãos de cultura, homens que cresceram na crença de que apenas o que eles sabem, fazem e criam é importante, tem sentido, tem interesse. Como todos os órfãos, mais cedo ou mais tarde, dar-se-ão conta de que não nasceram do vazio, que havia um antes e haverá um depois. Que afinal têm pais! Mais cedo ou mais tarde, descobrirão que, mesmo os saberes, por mais operatórios, objectivos, funcionais e profícuos que sejam, resultam de um processo que os justifica. Mesmo na sua epistemológica revolução paradigmática. Descobrirão que não vivem sozinhos e, acima de tudo, que não se fazem sozinhos. Fazem-se (fazemo-nos) uns com os outros e apenas com os outros nos fazemos humanos .
O outro é, pois, na sua diferença ôntica e ética, a razão de ser da escola, da pedagogia e da educação. O outro é a razão de o eu ser o que é: imperfeito, inacabado, historicamente marcado pelo tempo e pelo sítio onde vive. O outro, enquanto aquele com o qual o eu se confronta e se forma, estabelece a dimensão ética do ser, pensar, dizer e fazer do eu que o reconhece como diferente e, por isso mesmo, com igual dignidade e onticidade.
O reconhecimento da diferença como categoria ontológica e ética coloca-nos no cerne da reflexão sobre a escola, a pedagogia, a educação e, por conseguinte, do tempo, do espaço e do projecto educativos. Por três razões essenciais:
1. Reconhecimento da historicidade do tempo, do espaço e dos saberes humanos;
2. Reconhecimento da comunicação como centro da actividade pedagógica e educativa;
3. Reconhecimento do projecto como expressão da permanente busca humana pela superação dos limites da sua fragilidade e ignorância.
Bibliografia referenciada
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