terça-feira, 21 de julho de 2009

"Aqui, quem manda sou eu"

A expressão li-a no Terrear. Transporto para o Nós o comentário que lá deixei e acrescento outros elementos de reflexão. Um dos perigos (que pode ser também uma vantagem) do tipo de autonomia e de gestão que está a ser implementada em Portugal é justamente aquilo que chamo "a atomização do ditador", quer dizer, a multiplicação dos comportamentos impuros latentes nos presidentes dos conselhos executivos, democratas por necessidade, não por convicção nem, sobretudo, por dimensão ética. O que, certamente irá acontecer é a contaminação da acção pela fragilidade da liderança que se afirma na sua fraqueza fiscalizadora, controladora, dominadora, incapaz de criar dinâmicas de acção grupal. Por isso, dizia acima, que isto pode ser vantajoso: manifesta o que estava latente.
O ditador é um buraco negro: absorve e, portanto, elimina tudo o que dele se aproxima. O ditador apenas se reconhece a si mesmo. A todos os outros é-lhes negada a existência: ou porque se identificam com o ditador e, consequentemente, anulam a sua própria identidade, a sua individualidade, a sua subjectividade, a sua vontade, a sua liberdade, a sua dimensão ética, a sua razão de ser homem e, por conseguinte, não são o outro mas o mesmo; ou porque simplesmente são eliminados por impossibilidade de integração no ditador e, portanto, deixam de ser. Eliminação metafórica ou real. Essa é a razão porque o ditador abomina a diferença. De resto, é essa a única coisa que ele teme, que abomina. Justamente porque a diferença é a ameaça viral que pode minar a sua narcísica centralidade absoluta. Por isso, a neurótica obcessão com que cria processos panópticos de controlo: tudo tem que ser controlado, vigiado, compartimentado, formatado. Tudo tem que ser igual. Ao ditador, claro.
Ora, o "aqui, quem manda sou eu" é o sintoma desse vírus latente que aguarda silencioso o momento oportuno para se mostrar e contaminar os vivos. Por isso, grita bem alto, para se justificar a si mesmo: "quem manda aqui sou eu".
Coitados, não sabem do medo que trazem no olhar!

3 comentários:

tacci disse...

Não sou um dos incondicionais da Agatha Cristie, mas, de vez em quando, foge-lhe a máquina de escrever para as coisas importantes.
A sua Miss Marple passa a vida a comparar o que se passa com os figurantes da sua pequenina aldeia.
É como se houvesse uma correspondência entre o micro e o macro.
E isso é particularmente verdadeiro nas questões de poder.
A figura do «presidente» é sempre igual, quer seja de uma escolinha, de uma junta de freguesia ou dos Estados Unidos: manipula e domina tanto quanto pode.
O «ditadorzeco» e o «pinochet» só se diferenciam pelo medo que os zecos têm dos pinochets que lhes estão por cima.
E, evidentemente, se não há fiscalização «de baixo para cima»,
bem lhe podemos chamar democracia: não passa de um pitbull que morde o dono.
Um abraço.

jad disse...

Caro, Tacci, acabei agora de rever "Os condenados de shawshank". Sabemos quanto as prisões correspondem a um perfeito microcosmos do exercício de poder. A "atomização do ditador" encontra aqui campo propício à sua multiplicação, numa cadeia de poderes que começa no director até ao mais comum prisioneiro. Como Foucault e a sociologia (francesa especialmente) mostraram a sociedade foi-se estruturando criando instituições que pudessem espelhar ou reproduzir exercícios de poder que a mantivessem "normalizada". O quartel, a prisão e a escola são três delas (claro que devíamos acrescentar a igreja e o direito para nos aproximarmos mais da matriz marxista que lhes serviu de modelo). Todas são estruturas de poder. Contudo, o poder em si não é bom nem mau. O exercício do poder sim: ou é dignificante ou aviltante, ou se rege por uma dimensão ética ou é degradante da dimensão humana.
Concordo, claro, com a tua relação do "ditadorzeco" com "pinochet" mas não creio que todo o exercício de poder seja necessariamente mau. É, contudo, preciso um permanente estado de vigília para que quem exerce o poder o faça dentro das fronteiras éticas com os seus valores esteio (liberdade, rspeito, tolerância e solidariedade) e que quem o aceita tenha consciência que "a força do general não está nele mas na obediência do soldado". Esse é o seu poder e é fundamental que não o esqueça. Essa é também a razão de ser da democracia. Só que, tornada exercício de marketing, a venda dos "produtos" torna-se o seu valor central e, quando isso acontece, os "consumidores" são esvaziados do seu poder de arbítrio e tornam-se ecos da voz do dono. Dito de outro modo: faz-se crer aos votantes que são eles que escolhem de livre vontade mas na verdade são os candidatos que dizem aos votantes o que devem excolher. E este é o limite principal da democracia que, recordemo-lo "é o pior de todos os regimes, à excepção de todos os outros", como clamava Churchill. Portanto, eduquemos os pitbull para que sigam o dono e o protejam e não que lhe mordam. Mas o perigo permanece latente...
Abraço, Tacci

tacci disse...

Jad:
Como devemos entender a palavra «poder»?
Por mim, tendo entendê-la de duas maneiras: como liberdade, no sentido de "ser capaz de iniciar uma sequência causal livre", como no Kant, o que seria um poder bom; ou no contexto da dialéctica do senhor e do escravo, do Hegel, em que um determina a acção do outro que assim aliena a sua razão e, consequentemente, a liberdade.
Julgo que é neste último sentido sentido que Foucault usa o conceito.
Estou enganado?
Se assim for, o «exercício do poder» é sempre mau; exige a violência sobre o outro - como sabemos que tende a ser e a história nos mostra que tem realmente sido.
Muitas vezes penso que o marxismo só nos deixou uma noção realmente importante: a de que o único homem livre é o libertador. E, como eu não entendo a liberdade senão como autodeterminação da consciência, o único libertador deve ser o educador.
Será?