sexta-feira, 31 de julho de 2009

Ensinar e aprender

Numa altura em que vão sendo apresentados os programas de governo (ou eleitorais, como se quiser) vêm-me à memória dois excertos de textos que me parece poderem contribuir para nos situarmos quanto ao sentido de educar, aprender e ensinar. Que há muita teorias, muitas perspectivas sobre a educação, o ensinar e o aprender todos o sabemos, que todos somos portadores de teorias explicativas do sucesso e do fracasso da educação, também o sabemos, que não há educação sem quem ensine e quem aprenda é igualmente do senso comum. Como compreender, então, que continuemos com o problema da educação, do ensinar e do aprender permanentemente em aberto, apesar de tantos pensadores, tantas teorias e tantos livros e estudos sobre esta actividade especificamente humana. No meu entender a razão principal prende-se com a complexidade humana e, sobretudo, com a complexidade da linguagem humana. Se a realidade natural, social, humana fosse simples há muito que estaria explicada. Tornava-se transparente, conhecíamos todos os seus detalhes. Se a linguagem humana fosse também ela simples, isto é, se as palavras fossem apenas termos e signos e não conceitos e símbolos também não teríamos qualquer dificuldade em transmitir à geração seguinte o que a anterior sabia absolutamente, ou seja, que o que sabia espelhava plenamente a realidade, o ser. Evidentemente, nestas circunstâncias, não haveria espaço para o erro, para a dúvida, a incerteza, a escola perdia sentido e a educação não tinha razão de ser. Educar, ensinar e aprender justificam-se, pois, na complexidade, na opacidade: a realidade que queremos saber e a linguagem em que a dizemos escondem mais do que o que mostram. A missão da escola, da educação, do ensinar e do aprender é torná-las acessíveis ao maior número de homens possível. Sem resignação e sem descriminação de qualquer espécie. Centrada em valores fundantes do modo de nos fazermos homens: a liberdade, a solidariedade, o respeito e a tolerância. A responsabilidade é filha deles.
Nesta perspectiva, a educação, o ensinar e o aprender que não se centrem na linguagem e na sua complexidade plurívoca e nos valores que a sustentam estará ao lado do processo que conduziria ao efectivo crescimento humano.
Por isso, me assaltaram estes excertos, por isso aqui os deixo:
"O problema real, fundamental e primeiro da educação" é o seguinte: "as palavras, as imagens, os textos [...] têm um sentido para aquele que sabe, [mas] ainda o não têm para aquele que aprende" (R. La Borderie, (1994: 33) . O resto, acrescenta ele, não é mais que um invólucro administrativo, jurídico, organizacional, etc. Mas o que está no invólucro, e que demasiadas vezes fica escondido (ou até mesmo lacrado) é a actividade do aluno; actividade essa cujo fundamento é um acto de comunicação"
“Ensinar com seriedade é lidar no que existe de mais vital num ser humano. É procurar acesso ao âmago da integridade de uma criança ou de um adulto. Um Mestre invade e pode devastar de modo a purificar e a reconstruir. O mau ensino, a rotina pedagógica, esse tipo de instrução que, conscientemente ou não, é cínico nos seus objectivos puramente utilitários, é ruinosa. Arranca a esperança pela raiz. O mau ensino é, quase literalmente, criminoso e, metaforicamente, um pecado” (G, Steiner, 2005: 25) .

LA BORDERIE, René (1994) "Poderá falar-se de Comunicação Educativa?", Colóquio Educação e Sociedade, nº 5 Março de 1994, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 30-86))
STEINER, George (2005) As lições dos mestres, Lisboa, Gradiva

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Talvez Poema

O dia, a luz, o sol, o mar
resguardam-se do olhar das sombras da noite
em que os fantasmas acordam
do sono milenar.

Deixemo-los estar.

Fechemos o olhar
para melhor ver
o silêncio
do arco-íris.

terça-feira, 21 de julho de 2009

"Aqui, quem manda sou eu"

A expressão li-a no Terrear. Transporto para o Nós o comentário que lá deixei e acrescento outros elementos de reflexão. Um dos perigos (que pode ser também uma vantagem) do tipo de autonomia e de gestão que está a ser implementada em Portugal é justamente aquilo que chamo "a atomização do ditador", quer dizer, a multiplicação dos comportamentos impuros latentes nos presidentes dos conselhos executivos, democratas por necessidade, não por convicção nem, sobretudo, por dimensão ética. O que, certamente irá acontecer é a contaminação da acção pela fragilidade da liderança que se afirma na sua fraqueza fiscalizadora, controladora, dominadora, incapaz de criar dinâmicas de acção grupal. Por isso, dizia acima, que isto pode ser vantajoso: manifesta o que estava latente.
O ditador é um buraco negro: absorve e, portanto, elimina tudo o que dele se aproxima. O ditador apenas se reconhece a si mesmo. A todos os outros é-lhes negada a existência: ou porque se identificam com o ditador e, consequentemente, anulam a sua própria identidade, a sua individualidade, a sua subjectividade, a sua vontade, a sua liberdade, a sua dimensão ética, a sua razão de ser homem e, por conseguinte, não são o outro mas o mesmo; ou porque simplesmente são eliminados por impossibilidade de integração no ditador e, portanto, deixam de ser. Eliminação metafórica ou real. Essa é a razão porque o ditador abomina a diferença. De resto, é essa a única coisa que ele teme, que abomina. Justamente porque a diferença é a ameaça viral que pode minar a sua narcísica centralidade absoluta. Por isso, a neurótica obcessão com que cria processos panópticos de controlo: tudo tem que ser controlado, vigiado, compartimentado, formatado. Tudo tem que ser igual. Ao ditador, claro.
Ora, o "aqui, quem manda sou eu" é o sintoma desse vírus latente que aguarda silencioso o momento oportuno para se mostrar e contaminar os vivos. Por isso, grita bem alto, para se justificar a si mesmo: "quem manda aqui sou eu".
Coitados, não sabem do medo que trazem no olhar!

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O silêncio habitado

O poema habita o silêncio
na palavra que o homem inventa.

Quando a palavra justa
numa obsessão avassaladora de silêncio incontido
invade o homem
nasce o mundo
que ele é capaz de criar.
Nesse momento único
liberta-se a centelha divina
e o poeta nasce.

O poeta é filho do poema
voz do silêncio primordial
onde tudo começa
e o mistério mora.

Olha o mundo
com a obstinada lucidez da alma perturbada
com que busca a luz plena das coisas
que o habitam
e queda-se espantado
ante a imperfeita palavra
com que pinta o arco-íris.
Cria a ordem do mundo na força cosmogónica
da palavra habitada
e respira o azul da maresia
nas ondas esmagadas como um destino
no cais
onde homens e barcos se confundem
no fado
que é seu no ir e voltar na folha
onde navega
perdido
no nevoeiro onde todos os astrolábios são inúteis.

O poeta sonha
e na brancura habitada do sonho
inventa o amor
inventa a palavra
grávida
do mundo que há-de vir.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

"Je suis malade"

Enquanto a viagem iniciática do jovem estudante que foi para Paris trabalhar nas férias não avança, vale a pena voltar a uma das mais bonitas canções de amor em língua francesa: "Je suis malade". Esta versão tem ainda um encanto suplementar: mostra quão importante é a presença e o estímulo daqueles que admiramos e, hélas!, que imitamos! Daqueles, enfim, que nos servem de referência e de modelo. Os nossos heróis, aqueles que, de uma forma ou de outra, nos habitam ou habitaram os sonhos e a memória. Daqueles que nos fazem ou fizeram sorrir a alma de espanto, de respeito e de admiração.

c'est la vie!

Quand j’étais gosse
Je me promenais sur les nuages
Et voyageais sur l’arc-en-ciel

Quand j’étais jeune
je me promenais avec les caravanes
et voyageais sur la musique des cheveux rebelles

Maintenant
Je m’assis avec mes histoires
Et je me raconte les mémoires
des mondes et des gens
Où m’amènent les nuages et l’arc-en-ciel.

C’est la vie!

quarta-feira, 15 de julho de 2009

14 de Julho

Hoje apetece-me regressar à "gare d'Austerlitz" e cheirar, como nessa primeira vez, os cheiros que se soltavam do Sena e do “jardin du Roi”, ali ao lado, e do “bois de Vincennes”, um pouco mais afastado, e ouvir, com o mesmo encantamento de então, a musicalidade do falar parisiense. Era 74, estava fresca a primavera perfumada de cravos nesse Junho em Paris. Apetecia vestir a bandeira que nos identificava de novo. Éramos jovens, muito jovens. E sonhávamos, sonhávamos muito. Especialmente em Paris, permanente memória da liberdade, da igualdade, da fraternidade que lêramos nos compêndios de história e em livros mais ou menos clandestinos.
Nesse fim de tarde de Junho não fugia de nada. Não havia nada de que fugir. Era a necessidade de manter-me estudante em Lisboa que exigia proventos extra: fui trabalhar. Trabalhar ao ritmo dos emigrantes que foram anos antes "de salto" para a terra das "valises", das "auto-routes", dos "batiments", das bièrres", dos "bidonvilles", dos “birús”, dos “congés payés” e de todos os modos de ser e de viver que apenas conheciam pelo nome da terra onde foram parar. Donde partiram não havia nomes porque não havia coisas. Essas coisas apenas lá as conheceram pelo nome que então aprenderam. E para a sua terra as trouxeram. Vaidosos, orgulhosos exibiam as novas coisas nos nomes que apenas eles conheciam e não conseguiam traduzir. Não conseguiam fazer-se entender. Por isso, foram ridicularizados. Por isso, foram os "avecs" e as suas "valises".
Era miúdo. Lembro-me muitíssimo bem da primeira vez que o primeiro emigrante regressou à minha aldeia para tratar dos documentos na sede do concelho com que se havia de legalizar em França. A meio da tarde entrou na taberna, onde estavam os proprietários que meses antes lhe pagavam uma miséria para trabalhar nos seus campos, bateu sorridente com a mão no balcão e disse alto para que fosse bem ouvido: "Bièrre para todo o mundo". Era a sua assinatura. A sua afirmação. A sua emancipação. Também o seu poder, claro. Doravante, era ele quem podia pagar "bièrre" a todos, mesmo àqueles que meses antes eram seus patrões. Que melhor eco da Bastilha no granito beirão?!
Hoje, 14 de Julho, apetece-me regressar a Paris na musicalidade da sua língua, e nas palavras na música de alguns dos que mais aprecio.
Hoje, apetece-me ir “de crisantèmes en crisantèmes” com Brel. Outras viagens havemos de fazer. Allons-y.



domingo, 12 de julho de 2009

sábado, 4 de julho de 2009

Nascido na América

Apesar de todos os pecados, de todos os idiotas e idiotices e de todas as guerras vale a pena não esquecer os filhos da Revolução Francesa do outro lado do Atlântico. A nossa homenagem pela voz de um dos seus maiores poetas, que Pessoa tanto admirava - Walt Whitman.

I celebrate myself, and sing myself
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.

I loafe and invite my soul,
I lean and loafe at my ease observing a spear of summer grass.
My tong, every atom of my blood, form'd from this soil, this air,
Born here of parents born here from parents the same, and their parents the same.
I, thirty-seven years old in perfect health begin,
Hoping to cease not till death

Creeds and schools in abeyance,
Rettiring back a while sufficed at what they are, but never forgotten,
I harbor for good or bad, I permit to speak at ever hazard,
Nature without check with original energy.

Depois queixam-se?!...

Que a justiça é um dos mais importantes sintomas da saúde da cidadania e da democracia é do senso comum. Que esses sintomas se manifestam no modo como os cidadãos se sentem tratados e como o são de facto é também do senso comum. Que quando os sintomas indiciam doença deverão procurar-se os meios mais adequados para tratar a doença, e, sobretudo, impedir que ela chegue a manifestar-se é igualmente do senso comum e do bom senso. Que apenas os néscios não só não se preocupam com os sintomas como não fazem nada para cuidar dos problemas que os manifestam, continua a ser do senso comum e do bom senso.

Então, o que diríamos dos sujeitos que, ao longo de anos, de décadas até, não ligaram patavina aos pequenos sinais que indiciavam uma doença insidiosa que, uma vez manifesta, é muito, muito difícil de tratar?! Pois... há muitos adjectivos, não há?!

Que diremos pois do resultado do inquérito promovido pela SEDES, referenciado nos blocos informativos da TSF, que dá conta da profunda descrença dos cidadãos portugueses na justiça e nos políticos? Que havemos de dizer quando a população de um país - os cidadãos - acham que a justiça não os trata de modo igual, que protege (porque estou a citar de memória não sei se o termo é este mas o sentido é-o) os ricos, os políticos e os poderosos em detrimento dos mais pobres e mais fracos, que o Estado e as suas instituições deviam proteger, exactamente, porque são mais fracos?

Que diremos da convicção dominante segundo a qual os políticos se preocupam essencialmente consigo próprios em vez de defenderem o bem comum, a coisa pública, a res publica, a república?
Depois queixam-se do absentismo na escola, no trabalho, no cumprimento dos deveres sociais, nas eleições?!

Depois queixam-se do desinteresse generalizado pelo que não é exclusivamente do foro pessoal e individual?!

Queixam-se da indisciplina e da violência, expressões primárias do desrespeito pelo outro, isto é, por tudo o que não sou eu?!

Queixem-se, queixem-se! Entupam os serviços de urgência da solidariedade, do respeito, da tolerância, da liberdade e da responsabilidade, sua filha, e procurem fora o remédio que está dentro de cada um (especialmente dos que têm responsabilidades sociais de promoção do bem comum...) e depois queixem-se quando já ninguém os levar a sério!...

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Dois dedos de testa

Nós não aprecia a contenda política no que ela tem de sórdido e pouco edificante. Mas hoje não resiste ao apelo do gesto do ministro da economia. O que mais nos interessa é o gesto na sua dimensão simbólica ou metafórica. O que representam dois dedos de um ministro colocados em riste na testa? O que significa este gesto para as crianças, os jovens, os filhos, os alunos que vão ouvindo os professores e educadores apelar para a elevação das relações com os outros? Que pensarão dos pais e dos professores que censuram ou proibem tais gestos quando a TV - esse subliminar modelador de comportamentos - mostra um ministro da nação fazer esse gesto desmedido na casa da República, onde, supostamente, os valores se afirmam como deveres fundantes das relações de uns com os outros e são tidos como a expressão mais alta da nossa identidade política como nação, como povo?
Há cacos que é impossível colar. Estes dedos colocados em riste por um ministro no parlamento produzirão cacos que é impossível determinar mas que hão-de emergir nos momentos mais desusados e inapropriados. Na escola e em casa, por exemplo.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Apresentação

Nós é um blogue que deseja alimentar-se daquilo que nos faz homens, portugueses no mundo. Deseja alimentar-se dos poetas, dos filósofos, dos cientistas, dos professores, dos alunos, dos políticos, de todos aqueles que, de um modo ou de outro, contribuem para a nossa afirmação e identificação humanas. Dos sujeitos e das instituições que habitam.

Deseja, igualmente, alimentar-se da discussão, do diálogo, da conversa que se há-de desenvolver na busca das razões que sustentarão as posições assumidas pelo Nós e por todos os que desejarem participar na construção da rede que se há-de fazer com todos os nós que formos capazes de tecer.

"Somos a voz que temos", dizia Torga. Que não nos falte! Porque assim nos fazemos homens. Livres.

Existe há já algum tempo a quase obrigação de acrescentar "... e mulheres", "...e professoras", "... e alunas", "... e ministras", "... e..." quando se fala no masculino. No Nós não fazemos distinção de género quando falamos destes seres bípedes falantes. Somos homens e basta-nos.

Sejam bem-vindos.